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[Texto para discussão Nº 1]

Coletivo Clóvis Moura

Texto para discussão Nº 1


Economia e ideologia - a dominação burguesa, patriarcal e da branquitude na prática científica

I

Partindo do plano das discussões metodológicas e epistemológicas em relação às ciências humanas e sociais, não é novo afirmar que orientações ideológicas correspondem imediatamente a elaboração e adesão às mais diversas teorias, aqui são tratadas as econômicas. Discordar que ideologias tutelam a prática científica das humanidades supõe, no mínimo, inocência, mas - frequentemente -, desonestidade intelectual. Vale enfatizar, de todo modo, que aqui não há pretensão de reivindicar proposições puras ou livres de caráter ideológico, mas sim denunciar que o estado presente das reflexões que têm tomado lugar carece de uma incorporação na direção da totalidade de compreensão do objeto que a economia como saber se propõe a interpretar: a concretude das relações sociais de produção.

Por outro lado, não é novo dizer que a economia, ao se debruçar sobre a sociedade, identifica estruturas que, em grande medida, organizam a reprodução da vida humana. Evidentemente, a importância e implicações dessas estruturas variam ante as diferentes interpretações, compartilhando-se, no entanto, a noção de que elas existem, constituem e afetam o funcionamento do sistema. Portanto, ainda que sejam significadas de formas distintas, as estruturas que correspondem ao capitalismo são investigadas pelos mais diversos métodos, produzindo as mais diversas interpretações. Isso significa, pondo de lado as produções teóricas elaboradas, que há algo que compele a ciência econômica a desvendar tais estruturas: a realidade concreta é um dos potentes propulsores desse movimento. As relações sociais de produção imperam que a atividade científica busque explicações para os fenômenos que aparentam indispensáveis à reprodução da vida material e do modo social de produção vigente. O trabalho, o capital, a moeda, os instrumentos de política econômica, a produção e as demais categorias dispõem-se passivamente aos sabores dos economistas, enquanto existem concretamente no mundo real. São coisas, numeradas e catalogadas. Correspondem ou compõem as estruturas que fundamentam o modo de produção capitalista. É bem verdade que tal correspondência é tanto mais observada, quanto maior a preocupação da teoria em se afastar das manifestações aparentes do funcionamento das relações sociais de produção.

Se a realidade determina o que necessita ser estudado pela economia, existem outros determinantes. Tanto a dificuldade de compreender os fenômenos concretos dissociados de sua aparência, quanto uma instrumentalidade deliberada do saber econômico constitui o outro lado dessa dinâmica. Isso significa dizer que, se por um lado as coisas existem e, por isso, são objeto de estudo, por outro, há um espírito que consegue selecionar e valorar a realidade. A isso, que chamamos ideologia. A ela, se atribui uma tensão, uma inerente oposição, algo que se constitui pela negação do outro. A ideologia burguesa, por exemplo, apesar de pautar um ideário de igualdade, antagoniza proprietários e expropriados. Algo de propriedade e pertencimento da burguesia, mas que por vezes é incorporado e defendido pela massa de despossuídos. De mesmo modo, a branquitude não se vê como raça - ou mesmo povo e comunidade - e mascara a realidade do seu pertencimento racial e dominação étnica. Ainda, por intermédio do patriarcado, há um controle social que hierarquiza e organiza uma divisão sexual do trabalho construído a partir de convenções, também sociais, que menos tem a ver com sexo biológico do que com a centralidade masculina idealizada no patriarcado. Resta expor como a ideologia impõe a noção de norma a partir da sua propriedade e pertencimento. Tal esforço é imprescindível para o que se segue seja entendido no seu devido lugar: o de estrutura fundamental do desenvolvimento capitalista.

II

O corpo de ideias apresentado acima toma forma de uma norma, podendo ser observada através de sua incorporação ampla na sociedade - no senso comum -, como por exemplo a noção de inexorabilidade do dinheiro e dos mercados ou, ainda, a ontologia do trabalho assalariado. Essa norma também pode ser compreendida pela sua construção, posta em andamento pela transformação da força de trabalho em mercadoria, a equalização do valor por seu conteúdo de trabalho e a realização do ciclo do capital através do salto mortal da mercadoria. Em outras palavras, há uma ideologia que permeia o comportamento da sociedade, mas que se dá a partir de uma construção e conformação própria do capitalismo, pois é só no contexto de tais relações sociais de produção que se justificam essas noções emergentes que tomam uma suposta posição ontológica. Impõe-se um ideário que existe por e pelo capitalismo. Sem ele, não há sustentação à manutenção das relações sociais engendradas internamente ao desenvolvimento desse sistema. Surge, portanto, o ideário burguês, constituído pela autonomia e racionalidade do indivíduo e de plena liberdade humana e materializado no homem iluminista,o sujeito universal do capitalismo.

Mas quem é esse sujeito?

O ideário iluminista de igualdade, racionalidade e liberdade moldou por muito tempo as teorias econômicas gestadas pela economia política clássica - estando incorporado atualmente no senso comum e naturalizado em grande parte do pensamento econômico. Até que ele fosse questionado, justamente em seu caráter aparente, pelo rompimento apresentado pelo materialismo histórico.

Vejamos que, até que se tivesse sido contestado o que foi percebido como conjunto de ideias dominantes, não se produziu a compreensão de que o cerne das relações de produção se dava na supremacia da propriedade privada sobre a mera propriedade da própria força de trabalho, ou seja, a noção de que a ideia do homem iluminista é de pertencimento da burguesia, retirou do caminho da reflexão econômica as barreiras que mascaravam o caráter concreto de exploração da classe trabalhadora.

Dinâmica similar ocorreu dentro do marco teórico marxista feminista com a incorporação do patriarcado como característica central ao desenvolvimento capitalista e a exploração da classe trabalhadora. O entendimento de que o ideário que deu mote à construção histórica das relações sociais de produção vigentes era - para além da burguesia -, de propriedade do elemento masculino, possibilitou a incorporação teórica de reflexões acerca da expropriação e mercantilização do corpo feminino e sequestro da autonomia reprodutiva das mulheres. Isso produziu um debate amplamente difundido acerca da divisão sexual do trabalho e de enquadramento do trabalho reprodutivo, sua centralidade e condição geradora de valor, mesmo estando fora da esfera produtiva. Isso evidencia que, apesar da iniciativa teórica da linha teórica-metodológica correspondente à economia feminista, o debate transbordou para além das partidárias de tal corrente. Estando presente em salas de aula, nos núcleos de pesquisa e sendo apropriado - aqui positivamente - por uma gama maior de pesquisadores.

Contudo, que não se faça uma leitura equivocada. Tais leituras não são majoritárias no universo acadêmico. O que domina, ainda sim, é o caráter ideológico burguês e masculino como norma capitalista. Em outras palavras, compreendemos que o rompimento com os caracteres de dominação capitalista relegam certa marginalidade às teorias contestadoras. Ou seja, uma dominação que já foi denunciada e percebida no âmbito econômico, é naturalizada e reproduzida no campo científico. Através do tempo a norma se impõe como dominação das ideias mesmo dentro das teorias críticas a ela.

Deste modo, vimos como a ideologia se justifica pela propriedade - ou pertencimento - de caracteres que tomam lugar central e fundante no desenvolvimento capitalista. É, por conseguinte, a propriedade dos meios de produção que justifica a defesa do sistema de classes e os ideais de liberdade e igualdade gestados historicamente, mas, também, são essas noções que justificam a acumulação primitiva dos meios de produção e a organização das relações sociais produtivas nesses moldes. Também, é a propriedade da condição primária da égide patriarcal - isto é, a masculinidade - que justifica a conformidade com os padrões de divisão sexual do trabalho. Por outro lado, é o patriarcado que serve de base para a expropriação do corpo feminino e da autonomia reprodutiva, paripassu com a responsabilização mormente exclusiva das mulheres quanto ao trabalho reprodutivo. As teorias que não consideram a centralidade da exploração na relação capital-trabalho e sua articulação com a dominação patriarcal, as naturalizam, reproduzindo a hegemonia burguês-patriarcado na produção científico-econômica.

Então, resta discutir o último caractere que modifica centralmente o modo como os dois primeiros são construídos por e pelo desenvolvimento capitalista. No século XV, o conceito de raça era definido a partir da cristandade com o mito dos descendentes de Adão, confirmando a humanidade dos povos de diferentes etnias pela sua descendência, a raça negra era representada pelo personagem de Baltazar. Ao longo do século XVIII, o Iluminismo fundamenta o conceito por uso das Ciências Naturais. Sob o pretexto de explicar a diversidade humana por uma ótica supostamente racional e historicamente linear, seu resultado foi o advento de uma explicação classificatória e hierárquica. É também neste século que raça passa a designar cor da pele, definindo-se três raças - branca, negra e amarela - nas noções científicas. No século XIX, são acrescentadas características morfológicas - formato do nariz, cabelo, rosto, etc. - que fundamentam o racismo científico.

A constituição do caractere branco se dá por efeito da alteridade, isto é, o outro, o “negro”, não-ocidental, relativo, emocional. É, também, a negação de si mesmo enquanto pertencente a uma raça, mas compreendido enquanto universal, civilizado, ocidental, racional. Corresponde, nos moldes pré-capitalistas, pela abjeção do corpo negro, ou seja, a expropriação formal de sua humanidade instrumentalizada, sobretudo, pelo escravismo negro. Isto é, o pertencimento à raça branca ou, ainda, a propriedade da branquitude é o crivo que coordena a propriedade e pertencimento dos outros dois caracteres, além de suas próprias construções num movimento dialético. O produto dessa dinâmica é o racismo, emergindo com formas em aparência e essência, mas estritamente capitalista.

A totalidade proposta está baseada na compreensão irrevogável de que o sujeito iluminista é indissociavelmente homem e branco. Esta formalização decorre da noção de que o desenvolvimento capitalista necessitou da construção ideológica que subalternizou a humanidade com um recorte essencial de raça e gênero. Resta a ideia de que o sistema de classes só se desenvolveu pela construção ideológica que permitiu transformar - ao menos aparentemente - os elementos pré-capitalistas no marco civilizatório burguês europeu. Isto é, em conjunto com o processo de expropriação posto em movimento pela acumulação primitiva, liberando os homens de suas posses e os relegando a posição de meros proprietários de força de trabalho, houve pelo tráfico de negros africanos, a expropriação formal da condição humana do elemento negro e, pelo processo de divisão sexual do trabalho, a diminuição da mulher a um vetor reprodutivo de força de trabalho ao capital.

Os caracteres capitalista, europeu e homem correspondem ao núcleo ideológico expresso no pensamento burguês, a branquitude e o patriarcado que produziu, ao longo do processo histórico de constituição capitalista, as estruturas de opressão materializadas pelo classismo, racismo e sexismo. Deste modo, explicitam-se os elementos de dominação ideológica que conformou - também sendo conformados - a transformação da base material da sociedade. Evidentemente, que tal sistematização toma esse corpo expositivo como recurso categorizador, deixando subjacente as nuances e implicações de tal apreensão. Até aqui, portanto, pudemos pontuar o modo pelo qual existe “algo vivo” que tutela a reprodução das relações sociais e da vida material em sociedade. É bem verdade que parte dessa discussão já pode tomar lugar e ser incorporada na ciência econômica, mesmo que marginalmente. Agora, resta entender os desdobramentos modernos deste processo. Deve-se ressaltar que há um salto histórico representando uma lacuna que se justifica não por menor importância ou deficiência teórica, mas por opção dado o escopo da presente reflexão.

III

As reflexões apresentadas trazem - sob uma perspectiva geral - as bases do que se chama racismo estrutural. Com a necessidade de soar redundante, se trata de uma estrutura estritamente capitalista, materializada nas relações sociais de produção que significam, em última instância, a totalidade das interações sociais, consubstanciadas no que se manifesta como uma estrutura de opressão. Note-se que este termo - racismo estrutural - é conhecido e incorporado vulgarmente no discurso progressista e mesmo acadêmico. Entretanto, o que se ausenta ao debate e mesmo nas investigações deste grupo são as implicações e a centralidade de tal estrutura no funcionamento do modo de produção vigente.

Isto quer dizer que enquanto se reconhece sua existência e aparentemente sua fundamentalidade, há um obstáculo para que esta discussão tome profundidade e capilaridade nas teorias que se propõem compreender o funcionamento do sistema capitalista, o que ocorre, na verdade, é uma marginalização sistemática de temas que aparentam ou tomam forma da integralidade do racismo, que significa a restrição a condição de particularidade a algo que é necessariamente geral. O obstáculo supracitado tanto se alimenta por esse movimento de mascarar o conteúdo essencial dessa estrutura, quanto pela dominação ideológica que tutela a reflexão científica e filosófica nesse campo. Ou seja, se a complexidade do tema representa uma dificuldade ao avanço dessa compreensão, o conteúdo de contestação e de desarticulação do corpo normativo ideológico estabelecido como dominante impera uma resistência orgânica - ou automática - mais ou menos deliberada dada a consciência de pertencimento a tal corpo de ideias.

Deste modo, vamos desagregar as manifestações particulares do racismo com o intuito de, posteriormente, agregar seu funcionamento até chegarmos no geral, isto é, no racismo estrutural. O ponto de partida, chamado de racismo individualista é a manifestação menos polida e mais aparente dessa estrutura de opressão, facilmente identificada, mais amplamente rechaçada, contudo permeada por mistificações e particularidades extremamente úteis ao deslocamento do real conteúdo do racismo. A corporificação do racismo em sua instância institucional representa um avanço reflexivo ao mesmo tempo que emerge sua condição dialética de reprodução estrutural, frequentemente tendo sua denúncia e combate abrindo espaço para a acomodação de tensões, dissimulando o movimento concreto do racismo enquanto estrutura. Por fim, esmiuçar essas manifestações organiza, por contraste, o real sentido do racismo, incluindo suas manifestações aparentes no conteúdo central dessa estrutura de opressão.

O racismo individualizado, assim como as diferentes economias capitalistas ao redor do mundo, tem formas e expressões particulares, correspondentes ao desenvolvimento histórico de suas relações raciais. Enquanto sua substância diz respeito ao preconceito racial antinegro, suas imagens, funcionamento e combate tomam especificidades correlatas as culturas que são seus lócus. Isso implica que na literatura, na música, na arte e, mesmo, na linguagem há espaço para a produção de representações caricaturadas do negro nesses locais. As ofensas racializadas e o padrão de discriminação têm origens e mecânicas distintas em locais diferentes, o que justifica símbolos e sociabilidades substancialmente particulares. Ou seja, uma ofensa ou discriminação contra negros nos EUA não são necessariamente semelhantes as que ocorrem no Brasil. Mais que isso, a negritude em Angola ou em um país majoritariamente negro na África não é igual a do indivíduo no Brasil ou na Europa. Ainda, um negro africano passa a ter uma outra significância sobre a cor de sua pele caso ele conviva numa sociedade distinta da dele, como acontece em casos de imigração, nos quais acabam por perceberem-se negros somente fora do país natal.

Deste modo, se discute o cerne do preconceito racial como tendo um mote de “marca” ou de “origem”. O preconceito de marca - como no caso do Brasil - seleciona os alvos de injúria e discriminação por elementos fenotípicos, hierarquizando o preferível e preterível, relegando papéis sociais dadas tais características. O cabelo bom e ruim, o nariz bonito e feio, os lábios delicados ou beiços, o limpo e o imundo, a disposição natural à intelectualidade ou aos trabalhos braçais, a mulher para casar e a para foder, a civilidade e a boçalidade. Mesmo as características que parecem positivas são carregadas de preconceito e limitações racialmente dirigidas. As belezas exóticas, a aptidão na dança, música e esportes, os mega falos e a sensualidade inata. São todos elementos historicamente constituídos na sociedade brasileira que podem não ter correspondência imediata em outras sociedades, mas que têm base numa linha de cor que é perceptível visualmente. O preconceito de origem - caso que toma lugar nos EUA, por exemplo - faz imperar a lógica da gota de sangue, pela qual o simbolismo de que uma única gota de sangue negro na ascendência do indivíduo tem o poder de imputar a condição de discriminado. O que é comum em todos os casos é que historicamente essas sociedades construíram imagens de preconceitos estabelecidos a partir da expropriação formal do negro de sua condição humana. Isso implica em uma reprodução da segregação social nas relações que até aqui só se manifestam aparentemente, sendo entendidas como comportamentos reprováveis e individualmente corrigíveis. Em essência. correspondem ao racismo em sua forma de estrutura, servindo como ferramenta de sua reprodução.

O que se chamou de racismo institucional surgiu como um avanço na reflexão sobre o tema, mas, também, numa potente forma de mascarar sua condição de estrutura e mitigar a contestação da hegemonia da branquitude. O modo como ela - a branquitude - organiza as instituições no capitalismo se dá no sentido de manter uma dominação - originada e ratificada pelo corpo de ideias da burguesia-patriarcado-branquitude - que se reproduza e produza seus privilégios. Novamente, tal reprodução é mais ou menos deliberada dado o nível de consciência e pertencimento ao grupo dominante. A negação dessa dominação ou mesmo a ignorância acerca dela não garante o combate ao racismo institucional, menos ainda quanto ao racismo estrutural. Note-se que este se manifesta com direção de acomodação de tensões raciais postas em passo e percebidas na sociedade e, tal acomodação, serve ao grupo étnico dominante no formato de manutenção do status quo, controle e acesso às instituições que assim funcionam. As leis são os melhores exemplos do modo como, ao objetivar a amenização do racismo observado num determinado lugar, se instaura um processo de deslocamento real das implicações do racismo. A liberação das práticas culturais por força da lei se transfiguram num processo de embranquecimento e domesticação dos elementos tradicionalmente negros em uma sociedade, emergindo um processo de aculturação que pode até mesmo remover o sentido da denúncia das relações sociais racistas. Como pode ser racista uma sociedade que abraça as manifestações religiosas e artísticas da parcela negra da população? Ou, ainda. como se é racista sendo que o acesso e a presença de negros em determinados espaços é observada e incentivada? A este segundo questionamento, uma dupla dimensão pode ser explorada.

A primeira delas dá conta da redução do problema do racismo institucional a questões de representatividade. A outra, diz respeito a instrumentalidade prática dessa manifestação do racismo. Os avanços no sentido de reparação e equalização de oportunidades culminaram em políticas afirmativas de inclusão da população negra em alguns espaços da sociedade. Enquanto isso representa um avanço conquistado através da luta dos movimentos negros, ao mesmo tempo se limita a algumas instâncias. A garantia dessa reparação se vê constantemente ameaçada, seja em sua continuação, bem como, em seu cumprimento. Para seu cumprimento, o que se observa é a facilidade com que essas políticas podem ser fraudadas e a dificuldade com que se dê o cumprimento das leis e determinações a elas relacionadas. Ora, se as instituições determinam a aplicação e orientação de tal política, o seu descumprimento, obstaculização de acesso ou mesmo apatia frente casos fraudulentos significam senão que a própria existência e presença negra nesses âmbitos é ofensiva a dominação da branquitude e, portanto, a conivência com a má realização do processo toma expressão evidente do racismo institucional.

O que se pretende explicitar, portanto, é que existem emergências racistas sob formatos específicos e particulares, mas que dizem respeito ao modo como a supremacia étnica representada pela branquitude arraigou as relações sociais no capitalismo por meio de sua estrutura racista. Isso, por sua vez, tem origem no desenvolvimento histórico do capitalismo, mantendo um papel central ao modo como esse sistema se organizou. Também, as formas individualizada e institucional do racismo, ao necessitarem combate, têm a utilidade de deslocar o centro do debate, tornando - ao menos aparentemente - uma discussão central e indissociável ao capitalismo, em acessória e particular. É necessário, em sequência, discutir as incorrências práticas, políticas e ideológicas que tomam lugar no seio da economia enquanto corpo teórico e de debate.

A presente reflexão não se dirige especificamente a um combate do racismo individualizado no contexto do lócus acadêmico e científico da economia. Isto implica que, conforme esperado de quaisquer ambientes minimamente progressistas, injúrias, discriminações e preconceitos ocorrem com menor frequência e tomam formas mais sutis de micro agressões. No entanto, implica que aqui se quer denunciar a organização institucional de elementos racistas e trazer para o centro do debate a irrevogabilidade do racismo estrutural. Se a presença de economistas pretos não é regra, se o acesso é, por vários meios, obstaculizado ou, ainda, a noção de existência do racismo estrutural não toma o lugar que deveria no debate presente, há algo que significa - ou dá razão - o modo como essas coisas se dão.

Na prática, a primeira coisa que deve se ter atenção é que a divisão social em raças está superficialmente restringida ao não-branco. Isto é, a regra da sociedade é racializar apenas quem não é branco. Faz-se necessário que os elementos brancos nesse meio se reconheçam, em si e nos pares. O que implica na percepção de pertencimento e propriedade da branquitude em si, no outro e, mesmo, na produção científica. A relevância disso está em mitigar a noção de que raça é uma questão do negro e, em decorrência, a reflexão teórica é uma responsabilidade integral de todos estes sujeitos. Para além, esse reconhecimento já ocorre frente às tensões raciais e o resultado - repetimos - é mais ou menos deliberado dada a consciência da propriedade e pertencimento à branquitude. O que significa que tal reconhecimento ocorrerá invariavelmente. O que se pode disputar é a reprodução ou contestação dessa estrutura e da branquitude, mesmo - e principalmente - pelos possuidores desse caractere quanto ao corpo de ideias da dominação.

Em essência, o primeiro ponto é um chamamento a emergência da práxis a partir dessa reflexão teórica. Como se expôs, discutir racismo estrutural precisa ser ressignificado, já que o que se tem é, no máximo, o reconhecimento de sua existência de modo superficial e auto justificador. Dizem sobre racismo estrutural como se estivessem as mãos atadas - ou lavadas - e isso é um problema que expõe o cerne da questão: o racismo que rege as relações sociais e de produção, também organiza o debate e as institucionalidades em nosso meio. Isso significa, em efeito, a reprodução da hegemonia da branquitude em nosso meio, nas instituições e nas ideias (as teorias).

O segundo ponto é o direcionamento da práxis que impera emergir a partir das considerações aqui dispostas, o que objetivamente se apresenta em duas formas. A primeira diz respeito a capilaridade e aprofundamento do debate quanto ao racismo estrutural. A segunda, nem em ordem de importância ou sequência de tempo, revolve as questões de equalização das proporções institucionais quanto às representações dos elementos raciais.

Como se pôde depreender a partir das reflexões acerca das amarras racistas ao funcionamento institucional, a sua reprodução depende da manutenção - explícita e velada - dos privilégios de que usufruem os possuidores do caractere branco. Desta forma, ainda que as políticas de inclusão e representatividade aparentam ser direcionadas a modificação da institucionalidade racista, nada garante que assim elas funcionem. Ora, o que tutela a formação de tais institucionalidades são as relações de poder que as organizam e, portanto, a simples presença negra não é suficiente sozinha para que se subverta a lógica de dominação expressa pela norma. Assim, é necessário que se reestruturem os núcleos de poder e centros de tomada de decisão, no sentido de que a participação seja equalizada entre a branquitude e a quem ela domina, para que haja a possibilidade de sua contestação e consequente derrocada. Para tanto, além da presença negra, os processos decisórios, os cargos de coordenação - bem como de docência - e, mesmo, o corpo discente necessita eliminar suas desproporções e desigualdades. Em suma, precisamos responder às seguintes questões: quando a distribuição racial do país se refletirá “em nosso meio”? Quais os meios que iremos utilizar para garantir que isso aconteça? Qual a disposição e interesse para que isso ocorra nesse espaço? Quais os obstáculos e barreiras que dificultam isso?

Por fim, após muito ser dito sobre a relevância e a centralidade do racismo enquanto estrutura capitalista, o modo como ele organiza as relações sociais de produção, a sua tutela de dominação ideológica e sua indissociabilidade das opressões despendidas pelo patriarcado e pelo sistema de classes, resta apresentar como instrumentaliza-se o debate econômico de modo que essas questões sejam contempladas a contento. O primeiro ponto passa pela percepção de que o conjunto teórico validado, hegemônico ou canônico pode estar sobre a tutela da branquitude. Isso significa dizer que as obras e a prática científico-econômica podem estar limitadas ao marco civilizatório opressor. Embora possa ter havido, em partes, rompimento com a dominação de classe e gênero, a reprodução deste corpo de ideias pode estar restringida e valorada por tal marco. Ademais, também o processo de seleção de obras, autores e mesmo aceitação da crítica a esse conjunto pode estar sob a égide da branquitude. Portanto, faz-se necessária a compreensão e investigação das incorrências ideológicas da branquitude nesse campo do conhecimento. Isso toma forma num movimento reflexivo de revisão e recuperação de interpretações marginalizadas justamente por efeito de dominação ideológica. A pergunta que se quer responder é: as teorias e interpretações que orientam as visões e escolas de pensamento “do nosso meio” estão orientadas pela branquitude?

Em sequência, impera que a instrumentalização desse movimento se dê internamente a esse contexto e por meios institucionalizados nele, com a ressalva de que isso contradiz mesmo o funcionamento observado da manutenção da hegemonia ideológica. Incorre que somente a reflexão filosófica pode romper com tal dominação do pensamento e só a práxis pode direcionar a desarticulação de tais estruturas. Se é interesse que, tendo consciência do racismo como estrutura, modifiquem-se suas dinâmicas e se combata suas manifestações aparentes é imprescindível que se internalize e amplifique o debate ao mesmo tempo que se crie medidas e políticas concretas com objetivos bem definidos e dispostos em um horizonte próximo. Deste modo, é passada a hora de que a reflexão e conformação de um corpo teórico que compreenda essa interpretação tome lugar. Para tanto é inadiável que se incorpore como obrigatórias disciplinas, cursos e seminários no tema. Por fim, além da garantia de que as políticas afirmativas em passo tenham seu correto destino, sua extensão se apresenta com necessidade e responsabilidade inescusável, visto que ainda compartilhamos de um espaço racialmente muito desigual, tanto no corpo discente e mais evidente e preocupantemente no corpo docente.

Esta reflexão traz a demarcação das origens, desenvolvimento e implicações do racismo estrutural no saber econômico e no ambiente em que ele é produzido e se reproduz. Reafirma-se: o racismo estrutural tem tutelado tal produção e a organização institucional desse campo; a branquitude tem selecionado a crítica e direcionado o debate que lhe cabe, sob interesse de sua manutenção e reprodução; seja pelo acesso, presença e permanência ou, ainda, silenciamento e marginalização do tema, normaliza-se inércia e apatia frente ao amplo desequilíbrio racial instalado. Portanto é necessário que se reconheça o elemento branco como possuidor de raça, fazendo saber que estão em propriedade e pertencimento da branquitude enquanto corpo ideológico opressor de dominação. Que se saiba o que significa racismo estrutural e o impacto que isso tem no corpo teórico acumulado das ciências econômicas. Que se voltem a atenção e ações à ampla desigualdade racial entre os alunos, professores, coordenadores e diretores.

Como conclusão da presente discussão, são orientados os seguintes apontamentos de pesquisa: as bases histórico-econômicas do racismo estrutural; racismo e etnicidade na força de trabalho; acumulação primitiva e expropriação formal da condição humana do escravizado; interpretações do Brasil e branquitude; histórico e efetividade de políticas afirmativas; raça e urbanização. Sem o objetivo de esgotar as temáticas correlatas ao que foi exposto, entende-se que a compreensão da raça, enquanto categoria social, toma forma de elemento estrutural na constituição do modo de produção capitalista, estando assim, indissociável de uma leitura preocupada com a totalidade de sua compreensão.


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